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JULGANDO PELA CAPA

Em duas edições selecionadas da Capricho de 1964 e 1968, que veremos abaixo, percebe-se que a imagem tem um peso maior na capa do que o texto, que é breve e direto, se comparado aos anos seguintes; afinal, o produto principal era a fotonovela. Ainda assim, há uma sensação de unidade entre a figura feminina ali representada e as outras pautas trazidas pelas publicações, já que as chamadas das outras seções não se diferenciam tanto em cor ou tamanho de fonte. Além da diagramação, a construção visual conta com a técnica do zoom in, em que a câmera foca no rosto da pessoa e cria uma atmosfera de aproximação, de intimidade, como se a estrela da fotonovela estivesse não só mostrando sua história, como também oferecendo conselhos à leitora sobre assuntos que não foram abordados na narrativa. 

Capa da Capricho de 1964.

1964

Comecemos a análise pela capa escolhida de 1964 da “maior revista feminina da América do Sul”, como se definem no canto superior da imagem, cujo título da fotonovela é Apenas uma sombra. O que pode se inferir é que a “sombra” seria a protagonista, a mulher branca, magra e do olhar gentil e inocente presente na imagem, que estaria em segundo plano em relação ao marido, já que existe nessa construção um pressuposto de que uma sombra pertence a alguém. Seria uma esposa negligenciada e consciente de tal negligência. É uma alusão subentendida à figura predominante da época, referenciada por Buitoni como a “dona de casa insatisfeita”. 

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Enquanto isso, as outras seções trazem o “eterno galã” hollywoodiano Cary Grant, que se contrapõe à imagem oculta do marido negligente da fotonovela, como um exemplo de homem para as mulheres; tutoriais de blusas de tricô “fáceis de fazer”, reforçando o papel da mulher como dona de casa; e para finalizar, um caderno especial com um cardápio para todos os dias do mês, sugerindo os pratos que as leitoras devem preparar e como se alimentar para que sejam como a protagonista da revista, um símbolo de beleza e comportamento.

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Retomando às funções do discurso circulante, foram cumpridos o de dramatizar, por meio da fotonovela, e o de regular o cotidiano social pela própria dramatização, que produz significações de certo e errado de maneira sutil. É errado que o homem deixe sua esposa se sentir “como uma sombra”; o certo é ser como Cary Grant. Assim, todo o resto se alinha e as tarefas domésticas, como tricotar e cozinhar, são realizadas com maior alegria. E alegria, como bem se sabia, era beleza. Um rosto e um corpo bonito se manteriam.

Não há referências diretas à beleza e ao corpo nesta capa e os julgamentos de valor explícitos produzidos por adjetivos são escassos (“eternos”, “fáceis”, “sombra”), assim como marcas de oralidade e símbolos de liberação sexual; isso porque, naquela época, a Capricho ainda era um veículo mais conservador e voltado para um público feminino maduro, que já possuía personalidades, estereótipos e estigmas formados em suas mentes, em meio a um Brasil que acabava de entrar na ditadura militar, que duraria até 1985.

Capa da Capricho de 1968.

1968

Já nessa capa de 1968, o primeiro enunciado traz uma pergunta emblemática, anunciando uma “pesquisa” — em alusão à ciência e ao argumento de autoridade clássico da sociedade ocidental contemporânea para a construção de regimes de verdade — presente no conteúdo da revista: “só é feliz quem é bonita?”. Logo abaixo, vemos a imagem de uma mulher branca, magra, maquiada e sorridente, em uma resposta sutil à pergunta: sim, só é feliz quem é bonita, e aqui está a representação de beleza e felicidade como sinônimos indissociáveis. Dentro da revista, há uma argumentação, que pode ou não responder dessa mesma maneira. Mas o que se implica a partir da capa é que a questão é quase retórica. Ao lado do rosto dela, há uma chamada para uma matéria sobre “a vida fascinante das mulheres de circo” e, embaixo, a fotonovela Amor sem pecado, trama na qual “uma brasileira ameaça o casamento de Liz Taylor”. 

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São fantasias para a "dona de casa insatisfeita", distantes da realidade esperada para a brasileira de classe média, como a vida itinerante das mulheres de circo e a provável traição no enredo da fotonovela, mas que trazem nuances desejadas, como a liberdade, a sensualidade e a ousadia, representantes da beleza feminina a partir dos anos 1960. Essas implicaturas se somam às imagens padronizadas de mulheres magras, sempre magras, que aludem às beldades hollywoodianas, alimentando o culto à magreza sem precisar de muitas palavras. Nas décadas seguintes, essas ferramentas se adaptariam até surgir um discurso escancaradamente gordofóbico.

"O mito da beleza sempre determina o comportamento, não a aparência”

— Naomi Wolf em O mito da beleza (1992)

Os anos 1970 expandiram a associação do culto ao corpo ao prazer e ao cuidado individual. Para um período de endurecimento do regime militar, nada mais coerente do que se enquadrar como a "década do eu", longe do coletivismo típico dos movimentos de contraconduta em oposição à ditadura, e dentro de uma ótica neoliberal em que o indivíduo se torna gestor de si mesmo, conforme expõe Foucault. Inclusive, é nesse mesmo espaço de autogestão que se estabelecem os feminismos ocidentais não só daquela época, como das décadas subsequentes, o que pode ter facilitado a propagação do mito da beleza e do culto à magreza, já que a abordagem utiliza uma ótica patriarcal — pensando no patriarcado e no neoliberalismo como duas faces da mesma moeda —, crítica feita por Margareth Rago em "Estar na hora do mundo": Subjetividade e Política em Foucault e nos feminismos (2019)

 

Por mais que a autoestima fosse um conceito ainda estranho aos olhos dos brasileiros criados pela culpa cristã, a ideia era agora altamente disseminada, sobretudo nas metrópoles. Práticas praianas como o surf estavam em ascensão, especialmente no imaginário jovem, e esses espaços valorizavam silhuetas magérrimas. O verbo "assumir" para se referir a pessoas bem resolvidas e o termo "carinho" atribuído como uma necessidade fisiológica do corpo se tornaram parte do vocabulário. O corpo merecia mais, estava carente e fÅ•agil. E para isso existiam os cosméticos, em um exercício de carinho e delicadeza. A “expressão corporal” virou uma nova preocupação, conectada intrinsecamente à saúde mental, em uma nova fase da medicalização do corpo e da beleza que transcendia as aparências, embora estivesse estruturada nestas. Os cuidados com o corpo passaram a ser também “de dentro para fora”, com o estímulo no consumo de vitaminas, por exemplo.

A imagem mostra um anúncio da Plus Forma, uma marca de vitaminas, com uma modelo magra representando "a única maneira de desenvolver as formas do seu corpo, como você sempre quis". Ela posa sorridente.

Nesse anúncio publicado na Revista Nova de 1975, uma marca de suplementos alimentares se autodenomina como “a única maneira de desenvolver as formas do seu corpo, como você sempre quis”. E que formas seriam essas, afinal? A imagem mostra: um corpo jovem e magro, representado por uma mulher branca, posando em um biquíni. Se fosse “como você sempre quis”, no sentido explícito da enunciação, haveria de se considerar subjetividades, diferenças entre aquilo que é desejado por cada indivíduo. Mas aqui, não se trata do desejo do leitor — da leitora, no caso, já que o corpo retratado é o de uma mulher; e sim, do desejo dos anunciantes, daquilo que eles enxergam como um corpo desejável e digno de estar em um biquíni. 

 

A existência feminina em biquínis cada vez menores foi fundamental no processo de construção da gordofobia, assim como o culto ao narcisismo. Era preciso combater gorduras e celulites para ter um “corpo de praia” — expressão que ultrapassou as décadas —, com ginásticas, dietas, cremes e tratamentos em clínicas estéticas. A celulite passou a ser um problema, mesmo para as mulheres magras, já que evocava características do corpo gordo. O consumo de açúcar também se consolidou um vilão da magreza e da alimentação saudável. 

 

Além disso, com a crescente do individualismo e do erotismo, havia quem recomendasse que as mulheres tirassem autorretratos de seus corpos despidos. Os anúncios de produtos para emagrecer eram sugestivos, incitavam o prazer sexual e a sedução. Nada de sofrimento ou sacrifício; embelezar-se, emagrecer e rejuvenescer seriam processos para levantar o astral e a libido, assim como a autoestima, como mostram os estudos de Sant'Anna.

Nas próximas revistas a serem analisadas, de 1976 e 1979, respectivamente, podemos notar uma grande transformação estética e editorial da Capricho em comparação com as capas de 1964 e 1968. Em primeiro lugar, as modelos, ainda brancas e magras, aparentam ser mais jovens e remetem a uma beleza mais “natural”, se aproximando ainda mais de suas leitoras, permanecendo com a técnica do zoom in. Além disso, nessa época, a televisão se tornava cada vez mais relevante como meio de disseminação da cultura de massas, especialmente as telenovelas, reduzindo a popularidade das fotonovelas. Assim, pautas de beleza, moda e comportamento se ampliavam nas revistas femininas, aumentando também o peso do texto que anunciava o conteúdo das publicações. As informações voltadas para as mulheres passam a ser o novo produto central, enquanto as fotonovelas se tornam um detalhe no canto superior da capa da revista; apenas uma parte do conteúdo.

Capa da Capricho de 1976.

1976

E como as ideias disseminadas em artigos e reportagens ganhavam valor e prestígio, seria preciso detalhar melhor as chamadas para atrair o público consumidor, estabelecendo uma linguagem mais lúdica e amistosa, com vocativos como “você”, pontuações que trazem marcas de oralidade como os três pontos, a exclamação e verbos imperativos para assegurar o argumento de autoridade. A tal “autoridade invisível” nem tão invisível. E assim se fez. Na capa de 1976, há três chamadas para matérias.

 

A primeira traz uma afirmação de que “patroa e empregada podem conviver bem…”, inferindo que existem desavenças entre essas duas classes de mulheres e que estas podem ser contornadas e superadas. A segunda, um tutorial para “brincar” com retalhos em que “você faz suas artes!”, em uma variação da chamada sobre tricotar de 1964, dessa vez com ares mais divertidos e joviais, graças ao uso do verbo “brincar”. E a última recomenda que a leitora “não faça caretas”, pois “elas acabam em rugas”, induzindo a um caráter negativo para as rugas de expressão, características de rostos mais maduros. Dessa maneira, o que se pode deduzir é que o melhor a se fazer é evitar frustrações, para evitar caretas, para evitar rugas, para evitar semelhanças à velhice, para, por fim, evitar a feiura. São três aspectos de ensinamentos (ou controle) sobre o comportamento feminino, sendo o último diretamente conectado com o mito da beleza.

Mas não para por aí: logo abaixo, o que se anuncia apenas como um brinde “grátis”, incluso como um suplemento da revista, vem em letras ainda maiores e uma imagem que ocupa quase um terço da capa, o mesmo espaço ocupado pelo rosto da modelo: o “guia para um peso ideal”, “o livro da Capricho” que possui “a alimentação correta que não deixa você perder a linha”. Há dois subentendidos nesses enunciados: o de que existe um corpo errado e um corpo certo e o de que uma certa alimentação significa “perder a linha”.

 

Indo de encontro às respostas para completar as lacunas desses subentendidos, a modelo da capa, agora desconectada com a fotonovela presente na revista, ainda possui como papel representar o conteúdo da revista. Ela é sorridente, de fácil convivência, não deve fazer caretas para não adquirir rugas, é jovem e brinca de fazer suas próprias artes, e possui o peso ideal: de uma mulher magra, que não se alimenta excessivamente — que não se excede em nenhum aspecto de sua existência, na verdade. 

 

Se essa modelo não estivesse ali para confirmar as ideias vendidas pela revista, para cumprir uma promessa, isso iria contra as regras do jogo discursivo, já que as imagens relacionadas ao texto devem ser pertinentes e contextualizadas; especialmente porque não existe um tema principal em evidência. Assim, o peso é distribuído entre os assuntos apresentados, assim como a relação destes com a figura feminina da imagem. Essa representação trata da "encarnação dos valores dominantes em figuras que representam a identidade coletiva", de acordo com Charaudeau — representação que viria, mais tarde, a ser um papel desempenhado por celebridades. Se há alguma predominância é a do caderno de dietas que vem à parte, mais destacado do que os conteúdos da revista.

Capa da Capricho de 1979.

1979

Enquanto isso, na edição de 1979, há quatro seções expostas na capa. A primeira traz uma matéria “especial” sobre “amar e ser amada” como “uma transa que você deve aprender”. Tratando-se de um “especial”, espera-se que seja um conteúdo mais longo e destrinchado ditando o amor como uma necessidade, embora na diagramação não haja uma preponderância visual do tema.

 

A segunda fala sobre “serviço”, explicando “tudo sobre a profissão de recepcionista!”, oferecendo uma opção de profissão para as leitoras. Depois, em terceiro, a seção de “moda”, apresentando “os maiôs mais ousados e sensuais da temporada!”, o que se complementa pela quarta seção, relacionada à “beleza”, com “uma ginástica que vai deixar suas pernas enxutas!”. E é claro, um brinde grátis, que se tornava parte da peça: um colar de contas coloridas, muito "tchans".

 

Há uma progressão clara entre os temas, que se inicia pelo universo afetivo, passa pelo mundo do trabalho para incentivar um poder financeiro capaz de comprar os produtos anunciados na revista, divulga um desses produtos e, finalmente, ensina uma maneira de emagrecer e ficar com as pernas “enxutas” para amar, ser amada, trabalhar e servir perfeitamente em roupas de banho.

Além de presentear a dona da revista com um acessório, para introduzi-la ao imaginário fornecido pela revista. A it girl da vez amarra todo o conteúdo: embora não vejamos seu corpo, ela é notoriamente magra, sorridente, parece usar um maiô e o colar disponibilizado como brinde está em seu pescoço. Há sempre uma história a ser contada. E aqui, a história das pressões estéticas adquire uma roupagem mais explícita e mais jovem.

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É o que Buitoni define como a “mística do jovem”, que já se instalava na mídia a partir dos anos 1960; mais um mito para alimentar o consumo. Antes, os jovens imitavam ou faziam uma releitura da moda adulta. Agora, passavam a representar a moda, a beleza e o comportamento, sendo os dois primeiros ramificações do último. Foi dessa maneira que caminhamos para os anos 1980, a era da “gatinha” e da “beleza fundamental”. A partir daí, pautas antes encaradas como tabus como gravidez adolescente, drogas, ISTs (na época conhecidas como DSTs), aborto, homossexualidade e ecologia eram abertamente discutidas nas revistas femininas, formando mentes mais críticas, mas também corpos mais magros, com o crescente endeusamento das modelos entre as adolescentes, incentivado pelas revistas, que contavam agora com uma presença constante de artistas e personalidades nas capas.

 

Em 1982, a Capricho deixou de publicar as fotonovelas, que já estavam em decadência desde a década anterior, como percebemos até mesmo pelo espaço que passaram a ocupar nas capas. Transformou-se de vez em uma revista mensal de variedades, voltada para um público mais jovem, de nível socioeconômico mais baixo do que a leitora da Claudia, outra importante revista feminina da Editora Abril que circulava desde 1961. Mas ainda era preciso tirar o rótulo de “revista de fotonovela” para reestabelecê-la no mercado. Assim, em 1985, a publicação passou por um rebranding, tornando-se “a revista da gatinha", novo slogan da marca, que se tornou um fenômeno jovem.

 

A prática esportiva e de atividades físicas eram uma realidade dominante do espaço público, em praias, parques e avenidas, e dos espaços privados, como academias, clubes e condomínios. A ditadura militar, ciente de seu enfraquecimento,  intensificava esses incentivos para minar a coletividade e fortalecer o individualismo, com campanhas de combate ao sedentarismo como a Mexa-se e a Esporte Para Todos (EPT), que se propagaram com a ajuda da imprensa, como era de se esperar. 

 

Em 1989, a expressão “top model”, que já era popular, consolidou sua relevância após ser título de uma telenovela da Rede Globo. As modelos, na percepção de Sant'Anna, “pareciam vorazes consumidoras de marcas e serviços internacionais, sempre magras e jovens, justamente numa época em que o consumo de cosméticos e de perfumes ganhou maior importância no país”. A existência de misses infantis e o rejuvenescimento das revistas femininas como a Capricho denunciava que os padrões de beleza femininos iriam se estabelecer cada vez mais cedo na vida das mulheres.

“A mulher é instada a renovar-se dia a dia, da cabeça aos pés. Da roupa, da maquiagem, dos cabelos, passa-se ao corpo: faça plástica, é preciso ser totalmente nova. E a moda entra até na safra dos seios siliconados à semelhança da atriz de sucesso daquele ano. O mito da juventude, explorado até a exaustão na imprensa feminina, também se insere dentro da categoria do novo”

— Dulcília Buitoni em Mulher de papel: a representação da mulher na imprensa feminina brasileira (1981)

 A era da “revista da gatinha” intensificou a adesão de uma comunicação apelativa, com o uso de pronomes na segunda pessoa, vocativos, verbos no imperativo, gírias, expressões do mundo jovem e adjetivos no diminutivo. A autora de O mito da beleza explica como essa estratégia comunicativa se alia a um discurso neoliberal e meritocrático para convencer as mulheres: “Ao fornecer uma linguagem onírica da meritocracia (“tenha o corpo que merece”; “não se tem um corpo maravilhoso sem esforço”), do espírito empreendedor (“tire o melhor partido de seus atributos naturais”), da absoluta responsabilidade pessoal pela forma do corpo e pelo envelhecimento (“é claro que você pode moldar seu corpo”; “suas rugas estão agora sob seu controle”) e até mesmo confissões francas (“afinal, você também pode conhecer o segredo que as mulheres belas guardam há anos”), essas revistas mantêm as mulheres consumindo os produtos de seus anunciantes na busca da total transformação pessoal em status que a sociedade de consumo oferece aos homens sob a forma de dinheiro”.

Capa da Capricho de 1985.

1985

Nessa capa de 1985, ano do reposicionamento de marca, já começamos com a imagem de uma jovem segurando um gatinho, em referência ao novo slogan, que também é corroborado por ele próprio, abaixo do nome e por um “miau!”. O tema central é o reposicionamento em si, a instalação da nova Capricho e de suas ideias no imaginário das adolescentes e jovens adultas. 

 

As divisões de editoria são marcadas por verbos imperativos: “use”, “faça”, “pense”; “divirta-se”. Entre as seções, foram selecionadas para o destaque 12 pautas, um número muito mais expressivo de assuntos se compararmos com as revistas dos anos anteriores, o que possibilita maiores chances de atrair leitoras em seus interesses e subjetividades — muito embora as temáticas sejam limitadas ao que se considera jovem e feminino. A partir dessa etapa, o princípio do dialogismo, em que se infere que há sempre uma conversa sendo estabelecida entre emissor e receptor, é levado ao seu sentido literal pelos veículos femininos.

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Os tópicos vêm em formato de lista para que a leitora, apelidada de “gracinha”, possa “fazer sucesso”, construindo uma narrativa de necessidades; poderia, então, a lista ser resumida a um único verbo: precisar. Você precisa, você precisa, você precisa — como na música “Baby”, de Caetano Veloso (1969), que critica justamente esse discurso persuasivo e insistente do consumo (que é, também, do mito da beleza, da violência simbólica, da construção de qualquer mito). 

Para ser uma "gracinha" de sucesso, você precisa usar “jeans e jaqueta, a moda esperta”, “suéter novo, a moda quente”, “com ele, a moda namorada” (sim, roupas específicas para performar o papel de namorada e agradar o namorado) e as “novas cores de maquilagens (sic) outono, nem inverno, nem verão”. Precisa fazer “uns 30 minutos (só!), uma transformação total nos seus cabelos” e “em matérias de seios, ginástica ou plástica (veja qual é o seu caso)”. Precisa pensar em “sexo” e “mais sexo”, adquirindo conhecimento com o “ABC do Amor e do Sexo” e se “sua atitude diante dele é positiva ou negativa”; e ainda, em “amor” e “mais amor”, mostrando o ponto de vista masculino, “o que eles também pensam” sobre primeiras atitudes e “como melhorar as coisas”. Precisa, ainda, se divertir com “Ayrton Senna, um gato a mil por hora” e com as “sortes de São João”, que vão te ajudar a entender se é “ele mesmo quem você quer”.

 

Um ponto muito chamativo é o enfoque masculino direto e manifesto (“com ele” e “o que eles pensam”), antes mais oculto, disfarçado como meras dicas de amiga para amiga. A voz masculina é evidenciada, embora para Wolf seja uma escolha editorial ainda mais dissimulada, já que não se trata necessariamente do que os homens, como indivíduos, querem das mulheres e sim, o que os anunciantes querem. Assim, a revista se coloca como um oráculo de sabedoria (reforçado por beabás do comportamento e testes de sorte) e praticidade (com orientações que te transformam por completo em “só” 30 minutos), pensado por mulheres, mas legitimado pela suposta opinião masculina, que é inserida de maneira fragmentada, uma pitada por seção, para não faltar nem sobrecarregar.

 

A despeito da disseminação do corpo ideal, vale destacar a pauta dos seios, que sugere dois únicos caminhos para alcançar a perfeição: a ginástica “ou” a cirurgia plástica. O uso do “ou” silencia quaisquer outras direções; ou isso, ou aquilo. Um deles é o certo para você. Tudo aquilo que se coloca fora dessas duas possibilidades tem seu valor automaticamente anulado. Há ainda um reforço entre parênteses para que a leitora confira em qual dos dois casos ela se encaixa. Qual artifício do mito da beleza e da magreza ela deve seguir. Aqui, uma parte do discurso é excluída (a de que há outras possibilidades, como a de não modificar seus seios) para delimitar os padrões de um corpo correto.

 

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Capa da Capricho de 1988.

Enquanto isso, nessa capa de 1988, com a marca já posicionada em seu novo momento (e no momento do mundo), a imagem central passa a representar não só a “gatinha”, como também um tema específico acerca de seu comportamento. Nesse caso, trata-se do que eles chamam de “beleza verão”, anunciando uma matéria em destaque, com letras maiores: a "agenda da boa forma e ginástica na praia". A figura feminina é a de uma mulher, como sempre, magra, branca, sorridente (outro padrão que se repete constantemente para representar a felicidade e o bem-estar), dispondo de cabelos molhados, suor e uma pequena toalha ao redor do pescoço, insinuando que acabou de sair de uma sessão de exercícios físicos. Ela representa, principalmente, a pauta em destaque. Contudo, os outros tópicos, em sua maioria, não se distanciam da proposta de um verão ideal, com o corpo ideal, as roupas ideais e a preparação física e psíquica ideal. 

 

As editorias não são demarcadas por verbos imperativos; pelo contrário, nessa edição, as palavras de ação e o vocabulário conativo estão presentes de maneira mais implícita, enquanto em 1985, mostravam-se agressivamente. Afinal, a “autoridade invisível” da publicação já estava estabelecida entre o público feminino jovem. Poderiam voltar a agir, com suas promessas, afirmações, desejos e ordens, um pouco mais às ocultas. 

1988

Agora, as seções se dividem entre “moda” (que incentiva o uso de maiôs, biquínis, saias curtas e “decotes máximos”), “viagem” (“pelo mar e ilhas do Caribe”), “livrinho” (um manual à parte que fala sobre primeiros socorros na praia), “gente” (o espaço reservado aos famosos; Milton Nascimento e Madonna, dessa vez), “look of the year” (uma exposição de garotas que sonham em ser “top model”) e “comportamento”, que ao lado da primeira, possui um maior número de pautas em comparação às outras sessões, ou seja, um maior peso editorial, abordando a polêmica do aborto, de garotas que se apaixonam por outras garotas e de irmãs que se encaram como rivais.

 

Como podemos observar, os assuntos debatidos são mais ousados, assim como as visões referentes à moda. A associação da palavra “sonho” ao termo “top model” para falar das 60 meninas reveladas pela revista demonstram a influência das modelos nos padrões de comportamento. Modelos essas que tinham corpos magros e afinados, que poderiam ser alcançados por meio da ginástica, sugerida no cerne temático da edição; bastava mirar no “sonho” com força de vontade. 

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Concomitantemente, personalidades têm seus nomes na capa, em evidência, e suas vidas privadas são esmiuçadas e copiadas como ícones de representação, afetando as percepções de certo e errado na vida pública e na própria individualidade das leitoras — o que se acentua ainda mais a partir das décadas seguintes, quando passam a ter suas imagens estampadas na capa, em pleno destaque. Os estudos de Charaudeau relacionam esse fenômeno à definição da "palavra enfraquecida" de Georges Balandier, "o oculto que se torna manifesto a cada instante sob o regime do tudo visível".

A Marie Claire de 1991 trazia em sua capa "confissões de uma prostituta de luxo".

A revista chegava ao Brasil em 1991 com temas ousados

Chegamos à década da mulher “segura e sexy”. A partir dos anos 1990, estava declarado o culto às celebridades, sobretudo as televisivas. Para Buitoni, é quando a imprensa feminina atinge seu auge em termos de circulação e relevância de mercado, abrindo espaço para novas publicações como a Marie Claire, revista francesa lançada no Brasil em 1991.

 

As tecnologias passavam por uma revolução e participavam ativamente do processo de globalização e, no caso do Brasil, da disseminação de informações acerca da redemocratização do país, que em 1994 teve seu sistema monetário estabilizado com o Plano Real. O acesso à informação multiplicava, tal qual o uso de computadores pessoais. Assim, havia uma produção e uma reprodução desenfreada de imagens, em vídeos, televisões, outdoors, indoors impressos, nas telas dos computadores e em plataformas já conhecidas, como a revista. 

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Segundo Sant'Anna, a figura das “tchuchucas” e das “popozudas”, mulheres periféricas (e normalmente pretas) de corpos mais curvilíneos (ainda que magros), era estimulada pela emergência da cultura popular e passava a representar uma tendência de sensualidade — não necessariamente de beleza. Microshorts, marcas de biquíni e atitudes provocativas faziam parte do pacote.

Dizer que se infiltraram nos padrões de beleza dominantes, entretanto, é impreciso. Afinal, não eram essas as mulheres presentes nas capas das revistas. Seus acessórios e sua maneira de viver eram apropriados pela cultura, mas a imagem em si, não; o que nos traz de volta para as origens racistas da gordofobia. Os corpos dessas mulheres poderiam ser sexualizados, mas jamais poderiam ocupar territórios de representação de beleza, já que esta era, acima de tudo, branca e não-periférica. E magra, porque ela própria deve estar correlacionada à ideia de branquitude e de riqueza.  

 

Isso tudo acontecia justamente no momento em que pautas de interseccionalidade eram levantadas pela terceira onda do feminismo, liderada por nomes como Gloria Anzaldua, bell hooks e Audre Lorde. No entanto, por mais que as revistas femininas da época navegassem por pautas com recortes de etnias, nacionalidades, religiões e origens culturais, a execução se dava de maneira artificial, como sempre foi, e os assuntos não pertenciam à capa, ao destaque. Para isso, seria preciso alterar todas as bases estruturais do editorial dessas publicações, o que não interessava aos anunciantes.

 

É importante apontar a especificidade destas análises discursivas e do trabalho como um todo. Em sua definição de gênero, Linda Nicholson (2000) entende que a construção da identidade feminina é cercada por subjetividades e estigmas externos ao ser mulher, pura e simplesmente. Essa visão se complementa pelo conceito de "jogo de identidades" de Stuart Hall (2006), que demonstra que as características que individualizam o sujeito estão em constante interação, podendo se sobrepor a depender da situação social. São diversos domínios identitários na pós-modernidade atuando em um fenômeno intitulado "política da identidade", em que cada esfera simbólica tem seus próprios meios de vida. 

 

As ideias de Nicholson e Hall ajudam a entender porque não podemos generalizar e reduzir as questões em torno da gordofobia como somente as que estão sendo articuladas nessas capas. Principalmente porque parte da atuação da violência simbólica se faz por meio da exclusão, por meio dos corpos que estão sendo apagados da narrativa. Corpos gordos, negros, indígenas, idosos, com deficiência e por aí vai. Não se trata, portanto, de uma proposta "sobre mulheres como tais ou nas sociedades patriarcais" e, sim, "sobre mulheres em um contexto específico". Embora as revistas femininas simulassem uma universalização da beleza, que é o projeto elementar dessa violência, seu público-alvo era aquele representado em suas capas: mulheres brancas, jovens, metropolitanas e com poder de compra. Eram elas, sobretudo, que o mito da beleza objetivava moldar.

Capa da Capricho de 1991.

1991

Na Capricho Pow!, de 1991, o rosto à frente da capa é o da atriz e modelo Mylla Christie, considerada uma musa da época, com seu nome em evidência e um sorriso no rosto. Ela usa luvas de boxe, complementando o subtítulo dado à edição (a onomatopéia de uma pancada, Pow) e o texto em destaque, anunciado em letras muito maiores do que o resto das chamadas, e que deve fazer referência ao conteúdo estrelado por Mylla, é vago: “Vem que tem!”. Tem o quê? Não é possível inferir com precisão, mas pode-se levantar a hipótese de que a matéria irá falar sobre a prática do esporte. De todo modo, a ausência de uma descrição sobre o tema central da publicação implica que a imagem de uma pessoa conhecida e glamourizada era o suficiente para vender o produto.

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Além de Mylla, outros três nomes famosos são evidenciados logo abaixo do nome da revista, insinuando que iremos conhecer suas intimidades em algum nível: “New Kids on the Block”, “Almir Sater” e “Os meninos do vôlei”. Depois, um conteúdo de teste de personalidade para descobrir se “você dá muito fora”, o que pressupõe o ato de “dar fora” como algo negativo e embaraçoso. Então, nos deparamos com a opinião masculina, com um tamanho de fonte que só é inferior ao “Vem que tem!” e à “Capricho”, sobre o tema consentimento sexual: “O que eles fazem (e pensam) quando você não quer transar”. A própria seleção dessa questão somada ao seu peso tipográfico sugere que negar a atividade sexual pode ser uma polêmica, um problema, e que para reduzi-lo, a solução seria ouvir o ponto de vista dos homens ao invés de reforçar o conceito de consentimento e autonomia do corpo feminino. Há ainda outra matéria de bastidores, dessa vez do surf, e a seção de moda traz duas pautas: “a onda country” e “as roupas para quem está gordinha”. 

Precisamos considerar dois aspectos neste último enunciado. Em primeiro lugar, o uso da flexão verbal “está”, oferecendo um tom de efemeridade à condição deste corpo. “Estar” gorda é diferente de “ser”, que sugere inflexibilidade e estigmatiza a pessoa. Em segundo lugar, o emprego do eufemismo para se referir à mulher gorda com o termo “gordinha”, no diminutivo. Considerando o eufemismo como uma maneira de suavizar uma ideia, de torná-la mais agradável, carrega-se o subentendido de que há um quê de repulsivo naquela ideia.

 

No fim das contas, o “está gordinha” é uma dupla amenização que atribui um significado ofensivo ao “ser gorda”. E o que parece, a princípio, uma preocupação com esse público soa mais como um reforço positivo ao culto da magreza. Apesar de ser uma visão um pouco mais otimista e ampla do corpo feminino, é apenas uma dica de moda passageira, para quem, naquele momento, se encontra no estado “gordinha”.

Capa da Capricho de 1993.

1993

Na edição de 1993, três padrões de conteúdo se repetem em relação à de 1991: o sentimento de “passar vergonha” como um fardo (com o uso do termo “vexame” e da expressão “morre de vergonha”); a opinião dos homens, novamente com um grande peso visual (há até mesmo um selo de “extra!” anunciando que a revista foi capaz de se infiltrar “nos lugares secretos dos meninos”, seja lá qual forem esses lugares); e uma abordagem mais extensiva do corpo feminino, destacando “como aproveitar o corpo que você tem e deixá-lo em forma”. Além disso, a conscientização sobre o uso de drogas compõe o editorial, com o texto “CRACK: fique fora dessa” logo acima do nome da revista. A jovem da capa posa séria, segurando um ventilador, e o texto de destaque diz ainda menos do que o de 1991: “De vento em popa”. Não é possível fazer uma única inferência temática a partir dessa chamada, embora o nome da modelo não esteja indicado na página.

 

Focando na abordagem que essa publicação faz do corpo, é interessante perceber que “o corpo que você tem” foi ressaltado em outra cor e em negrito, abrindo margem para uma maior diversidade de tipos corporais. Entretanto, ainda assim, duas demandas são designadas a esse corpo: a de aproveitá-lo e a de “deixá-lo em forma”. O que seria aproveitar o seu corpo? Qual é o significado atribuído ao ato de estar “em forma”?

A resposta pode parecer oculta, mas está bem visível, já que a representação personificada dos conteúdos da revista se encontra logo ao lado, na protagonista da capa. Se o objetivo fosse, de fato, ressignificar o corpo e diversificar o que é considerado belo, o diálogo entre texto e imagem seria estabelecido de maneira diferente, com uma figura feminina capaz de quebrar os estereótipos da magreza. Não é o que acontece. O discurso se adapta a um tom mais otimista, mas a história por ele contada segue sendo a mesma, o que fortalece a contradição característica desses veículos. Fortalece, também, um discurso que já é forte o suficiente, a transformação do último século, em que a aparência física se torna a “principal prova da subjetividade humana”, como assegura Sant'Anna. 

“O estigma da gordura é uma forma de condicionar as pessoas a nunca engordar ou seguirem gordas, pois, dessa maneira, seríamos pessoas que fracassaram como indivíduos sociais”

— Maria Luisa Jimenez-Jimenez em Lute como uma gorda: gordofobia, resistências e ativismos (2020)

Avançando para os anos 2000, o corpo perdia seu status de constância, de um objeto fixo que se possui, e ganhava o posto de constituinte das identidades, em uma renovação incessante. Nessa época, observamos uma ascensão da classe média com acesso a uma saúde especializada, podendo e desejando então adquirir um corpo mais forte e aumentar a própria autoestima. Foi quando a cultura fitness se fundiu ao wellness, essa ideia de bem-estar que, conforme constatou a análise histórica de Sant'Anna, nada tem de inovadora. Era preciso não apenas ser magra, como também ter a barriga “sarada”. A ausência de gordura já não bastava; a massa muscular deveria compor a meta. A “gatinha” passou a ser a “fera”. Foi a hora e vez de Britney Spears, que se enquadrava perfeitamente nesse padrão de corpo — até não servir mais. 

 

Essa evolução do corpo ideal se refletiu na reconstrução da imagem das musas do carnaval, que antes eram mais esguias, delicadas e sem músculos. Tornavam-se as "garotas superpoderosas", na definição de Sant'Anna. Mulheres com seios "turbinados", quadris mais largos e bumbuns maiores. É necessário pontuar, todavia, que essas mulheres em específico, embora fossem símbolos de beleza na cultura de massas, eram na mesma medida sexualizadas, em larga escala, novamente tocando em questões raciais, visto que essas características foram definidas como pertencentes à população preta no século anterior. É o mesmo caso das "tchuchucas" dos anos 1990, exceto pelo fato de que possuíam um apelo popular mais abrangente por estarem inseridas nas tradições carnavalescas.

 

Falando em ícones de representação, atores e atrizes da novela Malhação, no ar pela Rede Globo desde 1995, tornavam-se mais relevantes no imaginário jovem e dominavam as capas de revistas, dividindo suas vidas particulares e seus segredos com o público. Eram os novos exemplares da beleza adolescente. A própria origem de sua produção se conecta com a evolução do culto à magreza, já que inicialmente, a história se passava dentro de uma academia. Por isso o nome, que se manteve mesmo depois que o cenário foi alterado.   

Capa da Capricho de 2000.

2000

Desta maneira, a contradição discursiva acerca do corpo nas revistas seguia e se intensificava, assim como a devoção às celebridades. Samara Felippo, capa desta edição do ano 2000, era uma das protagonistas de Malhação. Além dela, há 5 outras citações a pessoas famosas nas chamadas: “Marcelo Bonfá fala do disco solo”; “A tristeza de Mario Frias”; “Axl Rose e o novo CD do Guns”; “Confissões de Enrique Iglesias”; “HANSON no Brasil”; e “A megafesta de 16 anos do Junior”. Ocorre aqui uma multiplicação de personalidades públicas, indicando sua crescente importância no universo jovem. 

 

Além disso, as advertências sobre os efeitos das drogas (“os baseados estão mais potentes — e viciam pra valer”), os conselhos relacionados ao sexo a partir de histórias reais (“elas contam o que acontece depois”) e o ponto de vista masculino permanecem realçados. Este último se manifesta por meio das “10 mentiras que os meninos sempre contam para enganar as garotas”. O uso do advérbio “sempre” fornece a implicação de uma universalidade em que não há escapatória, são essas as mentiras contadas por todos os meninos e, portanto, você precisa descobri-las para se blindar da fraude; o que só vai acontecer comprando a revista. Fora que esse conto favorece a estereotipização e a naturalização de tais comportamentos masculinos.

Partindo para as contribuições da edição em relação ao culto à magreza, há muitos elementos de relevância. A começar pela imagem, que mostra a atriz a partir de sua cintura, simulando sensualidade ao morder a blusa, o que permite que sua barriga magra seja revelada. A interjeição "uau!", que indica um tom de surpresa, é direcionada com uma seta para a barriga de Samara. Essa marca de emoção deve representar a reação da leitora, que vai admirar o corpo da artista e se perguntar qual é o segredo para ser como ela. Logo acima, um título para definir a atriz: “Boa de corpo”. Mas o que significa ser boa de corpo? 

 

Caso não houvesse nenhum outro texto, poderíamos deduzir a resposta a partir da imagem: uma barriga magra, “chapada”, reta. No entanto, a imagem é complementada por uma descrição: "Samara Felippo explica como conseguiu esta barriga sequinha (e ensina o truque para você ficar igual)”. Do implícito ao explícito. Toda a construção desse discurso, que se faz dentro do interdiscurso da magreza, é meticulosamente calculada e feita de uma maneira progressivamente apelativa. Não percebeu só pela imagem? Leia o “uau!”. Não sabe do que se trata a surpresa? Leia o “boa de corpo”. Ainda não entendeu? Leia a explicação. A absorção da ideia possui etapas, para que seja inevitável chegar à conclusão de que a barriga de Samara Felippo é sinônimo de beleza.

 

A capa conta ainda com uma última chamada, logo depois da apresentação do conteúdo referente à atriz: “Big Model, um concurso da Capricho para meninas que usam G”. O nome da revista vem destacado em negrito, para reforçar a mensagem de que essa é uma iniciativa da marca, que a Capricho abraça a diversidade de corpos. O texto é acompanhado pelo desenho de uma boneca com braços mais grossos do que os das modelos, mas que ainda é magra e nada “big”. Mas a antítese não está presente só na contraposição desenho versus texto. Ao colocar essa chamada abaixo da matéria principal sobre a barriga “sequinha” de Felippo, ela se transforma quase em uma nota de rodapé, como quem diz: “amamos as magras, mas se você não é uma delas, pode receber um prêmio de consolação”.

Capa da Capricho de 2002.

2002

Dois anos depois, na edição com Priscila Fantin, a figura da “big model” do rodapé torna-se o centro da narrativa. Assim como Samara, ela também interpretava uma personagem principal em uma novela popular da Rede Globo, Esperança. Ao redor de sua imagem, os padrões editoriais se replicam. Os manuais ou “etiquetas” do sexo (“um jogo esperto sobre antes, durante e depois”); os testes que atribuem caráter de vexame e catastrofização a certos acontecimentos (“você sobrevive a um fora?”); a normalização de padrões comportamentais dos “garotos” (“por que é tão difícil para eles: assumir um namoro, dividir segredos, pedir para ficar, dizer eu te amo”); a observação da vida dos famosos (“Kaká solteiro”, “as anotações de Sandy na Europa”, entre outras chamadas); e, finalmente, a vigilância do peso, que nessa edição recai sobre sua protagonista, Priscila Fantin.

 

Na imagem da capa, cujo ângulo de captura mostra todo o seu corpo, a atriz posa com uma camiseta e as calças abaixadas, mostrando propositalmente suas pernas. Uma citação dela diz: "sou feliz com o meu corpo", enquanto leva seus dois punhos à boca e sorri em uma expressão envergonhada, colocando as duas informações em discordância. Suas palavras demonstram satisfação e autoconfiança com o próprio corpo, enquanto suas feições expressam constrangimento, em um embate antagônico.

Para completar, a afirmação “sou feliz com o meu corpo” implica um subentendido, uma felicidade que existe “apesar de” algum fator. Se ela se sente assim, haveria, então, motivos para experienciar o contrário. Afinal, a lei da informatividade no discurso pressupõe informações novas. Há uma pergunta oculta: por que ela não seria feliz com o próprio corpo?

 

É uma pergunta que a imagem pode responder se a leitora compreender, sob um viés inconsciente, que aquele corpo pertence à margem da beleza, entre as mulheres gordas. Isso se confirma pelo detalhamento da notícia: “longe de ser magrinha, Priscila Fantin, a Maria de Esperança, é contra a ditadura do padrão de beleza”. Ao selecionar essa mensagem a partir da entrevista com a atriz e colocá-la na capa, a própria revista se apropria dessa posição avessa à “ditadura do padrão de beleza”. Todavia, classificá-la como alguém “longe de ser magrinha”, ou seja, gorda, parte do mesmo padrão que está sendo criticado. Afinal, são esses padrões que estipulam quem é magra e quem é gorda. Se o modelo vigente estivesse sendo de fato rejeitado e condenado, não haveria espaço para os rótulos; seriam abolidos da narrativa. 

 

Em ambas as análises desta década, depreende-se uma versão do culto à magreza mais agressiva, com imagens que focam mais no corpo magro e atribuem juízo de valor de maneira mais explícita através das palavras — por mais que as próprias imagens sejam suficientemente diretas e expressivas, ao contrário das décadas anteriores, que produziam variações do mesmo retrato. Também é quando o mito disseminado pelas revistas femininas alcança seu ápice da contradição, pois os discursos da magreza que excluem pessoas gordas e os da positividade corporal (para corpos magros) se acentuam ao mesmo tempo, em uma relação diretamente proporcional.

 

A tendência do body positive persevera na década seguinte, nos anos 2010, com o surgimento das modelos e da moda plus size (que, em inglês, significa tamanho maior) e a expansão dos ativismos gordos por meio da internet e das redes sociais, adentrando a quarta onda do feminismo, definida como "interseccional, digital e coletiva" pelos estudos de Olívia Perez e Arlene Ricoldi. O conceito de plus size, entretanto, é contestado pelos próprios ativismos. Para Jimenez, "é anunciada uma repetição da padronização feminina, porém disfarçada por um corpo com 'curvas'". Em resumo, um corpo gordo socialmente aceitável, "sem barriga, com cinturas finas, corpos firmes, altas, brancas", o que faz com que as mulheres gordas se sintam excluídas mais uma vez.

 

De acordo com Sant'Anna, a popularização do body positive nas mídias teria ainda conexão com a ascensão das classes C e D, pois a gordura poderia ser, como em séculos anteriores, um sinal de elevação social. Passaria a significar “formosura, alegria, charme”, em um novo processo de estereotipização que quando não condena, romantiza as vivências da mulher gorda. Apesar disso, a beleza não é citada. E os termos utilizados nos meios midiáticos para falar de mulheres gordas denuncia a perpetuação dos estigmas com uma roupagem diferente. “Cheinhas”, “gordinhas”, “estrelas GG”, “beldades plus size”. O uso do eufemismo para amenizar os estigmas, como já vimos, segue marcando presença, e não lhes é oferecido  o título de belas por si só, é preciso que sejam categorizadas como gordas, como se houvesse um “mas” oculto (“gorda, mas bonita”).  

 

Essa foi a década de decadência das revistas físicas, que perderam gradativamente seu espaço para os meios digitais. Em 2015, a Capricho anunciou o fim de sua versão impressa, seguindo com as publicações em seu site e em suas plataformas de redes sociais. Foi justamente o ano em que Marília Mendonça lançou seu álbum de estreia e passou de escritora anônima para grande revelação sertaneja. Um fenômeno instantâneo. A extinção da revista adolescente é o único motivo pelo qual ela não estampou uma de suas capas. Assim, não saberemos como seriam suas edições e que histórias seriam contadas. A história fora dos palcos que conhecemos é aquela que observamos através das telas, em publicações autobiográficas, comentários de terceiros e matérias em portais de entretenimento, muitas vezes sem perceber os filtros de tratamento dados à sua vida privada; afinal de contas, o volume e a projeção de suas composições abafavam esses assuntos, inevitavelmente. É esse fragmento, insignificante para o legado de Marília, mas significativo para a arqueologia da magreza na era digital, que foi investigado em O Caso Marília.

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