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O CASO MARÍLIA

“Uma vez dentro da seita do controle de peso, nunca mais se está só. A gentileza que as pessoas costumam dispensar aos corpos masculinos não se aplica aos femininos. As mulheres têm pouca privacidade física. Cada mudança ou variação no peso é publicamente observada, julgada e debatida”

A carreira de Marília começou cedo, bem cedo. Aos 12 anos, iniciava sua trajetória no mundo da composição. De acordo com seu site oficial, a canção "Minha Herança", gravada pela dupla João Neto e Frederico, foi o pontapé em suas escritas. Quem curtia os sucessos "É com ela que eu estou", na voz de Cristiano Araújo e "Cuida bem dela", nas de Henrique e Juliano, não poderia imaginar que as letras partiam de uma adolescente, que em alguns anos deixaria os bastidores para se tornar a face da música sertaneja; mais do que isso, precursora do “feminejo”, o subgênero que conta a história delas, pavimentando o caminho para outras cantoras em um estilo musical predominantemente masculino.

— Naomi Wolf em O mito da beleza (1991)

Na imagem, Marília canta em um show, emocionada, de olhos fechados, com vestes coloridas e brilhantes.

Para as mulheres, tornar-se a face de qualquer coisa é mais do que uma figura de linguagem. Anatomia e aparência assumem os holofotes. A face, o corpo, a fisionomia como um todo, em destaque, monitorados e fiscalizados. Com Marília, não foi diferente. Enquanto gorda, era bombardeada com questões a respeito de seu corpo: você não se importa em ser assim? Não pensa em emagrecer? Não sofre preconceito no universo musical? É feliz dessa maneira? Perguntas frequentes para ela — que não eram ouvidas por seus colegas homens —, as quais fazia questão de oferecer respostas despreocupadas, indo contra o ideal de sofrimento esperado, atribuído ao estigma da mulher gorda. Essas mesmas respostas foram utilizadas para atacá-la quando a cantora decidiu emagrecer. Se era mesmo tão feliz quando gorda, por que emagrecer? Não aceitavam que ela abandonasse a posição imutável na qual foi colocada, embora tentassem pressioná-la para esse fim.

 

Ao abordar a cultura, Wolf alega que as mulheres precisam ser vistas como personagens unidimensionais para que a cultura continue masculina. Não é permitido que mulheres tenham uma mente e um corpo, apenas um dos dois. Uma mulher bonita e talentosa seria, então, uma contradição. Se ela possui um corpo considerado feio, pode ser talentosa, desde que seja constantemente relembrada de sua condição física. Agora, se seu corpo é socialmente desejável, é preciso que o foco esteja ali e que seu talento seja descredibilizado. Sua imagem é mais conveniente aos olhos do público, mas se torna tudo o que você tem. 

 

O caso de Marília se encaixa ainda no conceito de "beleza profissional" estabelecido pelo mito. Enquanto a beleza é vista como uma "qualificação legítima" para que uma mulher obtenha poder, estar dentro dessas vestes tira sua credibilidade como profissional. É uma contradição eterna, não há escapatória. Economias ocidentais dependem disso: é uma maneira de manter as estruturas intactas da forma como elas são. Cria-se um trabalho a mais para as mulheres, e isso se torna um bem indispensável, porém condenável ao mesmo tempo. Gorda ou magra, a rainha da sofrência foi contestada e sua aparência, focalizada em manchetes de entrevistas e reportagens a fim de gerar cliques.  

 

Para examinar a construção dos discursos desses conteúdos, selecionei três matérias de sites diferentes, redigidas ao longo da carreira da artista entre 2016 e 2019: Capricho, Claudia e Marie Claire. Todas as plataformas pertencem a marcas de revistas relevantes na história da imprensa feminina, já abordadas neste estudo. O foco desta análise é comparar a condução das narrativas com suas manchetes, que devem carregar aquilo que os jornalistas consideraram como a informação mais importante para sua audiência.

 

Em uma busca pelo termo “gordofobia” no site da Capricho, foram encontrados 54 resultados entre 7 de outubro de 2016 e 20 de janeiro de 2022, até o momento da pesquisa. Há, inclusive, uma matéria sobre o assunto envolvendo Marília, intitulada Marília Mendonça: a fixação pelo corpo da mulher e a magreza como troféu, publicada em novembro de 2021, logo depois das repercussões envolvendo o obituário publicado pela Folha de S. Paulo. Dois anos antes, a revista havia comunicado um relato feito pelo maquiador de Marília sobre uma situação de desacato vivida por sua equipe em um hotel, brevemente comentada por ela em seu Twitter. Na ocasião, Marília teria sofrido um episódio de gordofobia. Vejamos como essa história foi contada:

Texto 1 - Capricho (14/10/2019)

 

Título: Marília Mendonça dá pisão em ~fã~ que a chamou de gorda: “Errou, amada!”

Subtítulo: Já diz o ditado: "Quem fala o que quer ouve o que não quer..." 

Marília sorri para selfie postada em suas redes sociais.

Saudades, noção! Marília Mendonça estava na porta de um hotel em Catalão recepcionando os fãs para tirar fotos, quando um casal resolveu furar a fila para conseguir mais rápido o clique com a cantora. Além desta falta de educação, a dupla ainda ofendeu o maquiador de Marília e a própria sertaneja. Você acredita, miga?

Quem relatou o ocorrido foi Eduardo, o maquiador. “Gente, acabamos de ser desacatados em um hotel aqui em Catalão. Uma hóspede do hotel querendo tirar foto com a Marília, chamou ela de gorda [não dá pra acreditar que, ainda hoje, a palavra é usada com sentido pejorativo]! O marido me chamou de ‘bambi’ e eu quase estourei a cara dele, só não fiz isso porque ele estava com uma criança”, contou no Instagram.

 

Eduardo continua a história e disse que foi uma discussão bem acalorada. A mulher até comentou que deixaria de seguir Marília Mendonça nas redes sociais. No Twitter, a artista comentou brevemente a situação. “Achar que é superior aos meus fãs porque se hospedou no mesmo hotel que eu e por isso tem prioridade… Errou amada!”, escreveu.

O maquiador concluiu com sensatez o relato: “Quando você está hospedado no mesmo hotel que um artista, isso não quer dizer que você tem um ‘vale foto’, você precisa descer e entrar na fila. Não ficar rodeando corredor de quarto, não se achar melhor porque está hospedado. Tem fã que está há uma hora para tirar foto. Tem que respeitar os outros, sim!”.

E aí, o que achou da história?

Antes de pensar nos juízos de valor presentes no conteúdo, que se enquadra como uma nota jornalística, vale apontar que a linguagem amistosa, informal e recheada por marcas de oralidade (“saudades, noção!”; “você acredita, miga?”; “pisão”; “e aí, o que achou da história?”), herança de longa data das revistas femininas jovens como estratégia de identificação, convencimento e aproximação com o público, ainda é adotada pela marca, no título, na introdução e no fechamento do texto.

 

Por ser uma nota baseada em relatos proferidos nas redes sociais, a informação veio pré-fabricada; só precisaria ser interpretada e transmitida. Sua manchete traz duas informações: a de que uma falsa fã chamou Marília de “gorda” e a de que essa pessoa foi fortemente repreendida pela cantora. A inferência de que a fã é “de mentira” se dá pelo uso do til ao redor da palavra, que na internet funciona como o uso de aspas. O pressuposto é, então, de que a pessoa levou um “pisão” (gíria online para bronca) por tê-la chamado de “gorda”, o que é reforçado pela inserção de um ditado popular no subtítulo: “quem fala o que quer, ouve o que não quer”. No entanto, ao longo do texto, percebemos que esse pressuposto moldado pela interpretação da revista é incorreto.

 

No lide, descobrimos que o ocorrido se deu na porta de um hotel, quando um casal furou a fila para conseguir tirar uma foto com a sertaneja e, após a tentativa falha, proferiram ofensas a ela e ao seu maquiador, Eduardo, que já no segundo parágrafo, se revela como o narrador da história, afirmou que eles foram "desacatados" e ofendidos. Ela, como "gorda", que ele ressalta discordar do tom pejorativo. Ele, como "bambi", em um episódio de discriminação por homofobia, o que não foi salientado pela autora do texto.

 

Finalmente, no parágrafo seguinte, somos apresentados à declaração de Marília a respeito dos fatos: “Achar que é superior aos meus fãs porque se hospedou no mesmo hotel que eu e por isso tem prioridade… Errou amada!”, disse ela em seu Twitter. Percebemos que há um certo exagero no termo “pisão”, visto que foi um testemunho breve e assertivo, não muito mais do que foi revelado na manchete. Mas o principal aqui é que em nenhum momento a cantora citou ter sido chamada de gorda; assim como não foi esse o centro do relato feito por Eduardo. O que os dois apontaram como a lição de moral foi a prepotência do casal em achar que eram superiores por estarem hospedados naquele hotel.

 

Mesmo que esse apontamento esteja evidente no depoimento dos dois, a Capricho escolheu colocar a gordofobia em foco, embora não utilize a palavra, nem discorra sobre o assunto. Afinal, não teria como discorrer sobre um assunto que não estava sendo levantado pela discussão. Um assunto que pertenceu aos parênteses. Conforme proposto por Michaud, os estados de violência "podem ser construídos ou reproduzidos pelo discurso jornalístico, uma vez que sua formação discursiva está de acordo com uma formação ideológica”. Aqui, a gordofobia foi posta como objeto para chamar a atenção do público, em um ato de banalização que somente reproduz os estados de violência e, por conseguinte, os naturaliza, dentro de um interdiscurso que busca catalogar o peso das mulheres. 

Texto 2 - Claudia (08/05/2018)

 

Título: Criticada por perda de peso, Marília Mendonça explica sua decisão

Subtítulo: A cantora usou as suas redes sociais para falar sobre seu processo de reeducação alimentar

A montagem mostra um "antes e depois" de Marília durante sua perda de peso.

A cantora Marília Mendonça usou sua conta no Instagram para conversar com seus seguidores sobre sua reeducação alimentar. No final de semana, ela surpreendeu os fãs com um novo visual e, agora, após críticas como “cadê o empoderamento? Você não era feliz do jeito que era?” a cantora decidiu se pronunciar sobre sua perda de peso.

Na publicação, Marília desabafa sobre o motivo que a levou à opção da reeducação. Com apenas 22 anos, a artista já tinha 51% do corpo formado por gordura e, com acompanhamento médico, ela decidiu mudar de vida. Ela conta que estava passando por gripes frequentes e triglicérides alto e se perguntava “será que é essa bagunça que eu quero para a minha vida?”

A cantora ainda frisou que, diferente do que muitos podem pensar, ela não fez essa escolha apenas para emagrecer. Segundo Marília, se esse fosse o objetivo, ela “teria feito procedimentos mais rápidos e menos dolorosos. A intenção é ressignificar minha vida, colocar cada órgãozinho em seu funcionamento normal, ser feliz, só que para sempre!”

Além de explicar seus motivos, ela ainda negou ter feito qualquer procedimento cirúrgico, relacionando essa ideia ao balão gástrico que colocou em fevereiro de 2017. Marília percebeu, por causa do balão, que seu corpo era muito sensível à procedimentos e optou por não fazer nenhuma cirurgia.

No texto ela conta que, durante a experiência com o balão no começo de 2017, ela passou sete dias sem se alimentar e sem conseguir segurar água dentro do corpo: “deu o efeito reverso do que é ser saudável”. O balão gástrico é uma bola de silicone que infla na câmara gástrica, reduzindo a fome. É um procedimento considerado de baixíssimo risco.

A cantora de sertanejo terminou a publicação com uma mensagem motivacional: “Você consegue! Você é forte! Você não precisa de nada além da sua própria fé! Você consegue tudo que quiser! Eu consegui”.

O texto veiculado pela Claudia — revista que assim como a Capricho elucidou a gordofobia no pós-morte de Marília com o texto opinativo Marília Mendonça: a gordofobia nos assombra na vida e na morte — também faz parte do gênero informativo nota, transmitindo falas produzidas pela cantora em sua conta no Instagram. Dessa vez, a história é contada por ela própria, como propõe a manchete. A respeito da linguagem em um aspecto macro, podemos observar uma comunicação padrão utilizada por canais generalistas, objetiva e séria, sem gírias, oralidades e diálogos diretos com o público em segunda pessoa. Trata-se de uma revista com um público mais maduro, cuja credibilidade é construída em parte por sua formalidade.

A manchete vai direto aos fatos: Marília foi criticada por sua perda de peso e decidiu se pronunciar a respeito, “explicar” a decisão (de perder peso voluntariamente). O subtítulo complementa que a cantora utilizou suas redes “para falar sobre seu processo de reeducação alimentar”, reforçando o caráter autônomo e voluntário do ato de perder peso, e ainda o associando a uma alteração comportamental com o termo “reeducação alimentar”. A promessa de relevância e sinceridade em torno dessas informações é cumprida pelo texto, em que Marília realmente “explica” a decisão e “fala” sobre suas mudanças de hábito. Em uma progressão narrativa que passa pelas falas de terceiros ("você não era feliz do jeito que era?"), seus motivos para emagrecer, o emagrecimento como uma consequência secundária, a negação de procedimentos cirúrgicos e, por fim, uma mensagem motivacional ("você consegue!"). A polissemia contida no discurso contém as vozes dos seguidores, a de Marília e a da revista. Contudo, é a declaração da cantora que se sobressai; por mais que as outras sejam a verdadeira razão de existir do conteúdo.

 

Fora das falas de Marília, o texto acrescenta orientações sobre o teor das mensagens em cada etapa e ilustra a matéria com uma imagem que simula o formato “antes e depois”, com duas imagens diferentes da cantora em uma montagem. Além disso, traz esclarecimentos sobre o procedimento do balão gástrico, “uma bola de silicone que infla na câmara gástrica, reduzindo a fome”, que é “considerado de baixíssimo risco”. A primeira parte dessa explicação, sobre o que é e o que faz o balão gástrico era pertinente para dar contexto a todos os leitores, enquanto a segunda parte, a respeito do risco fornecido pela intervenção, parece se dirigir a um público específico: aqueles que se interessaram em realizá-la. 

 

Trazer esse fato de caráter científico é quase uma prestação de serviços à indústria médica, para tirar o estigma negativo das cirurgias, servindo ao projeto de medicalização do corpo feminino. É um pequeno trecho do texto, mas que carrega um aspecto fundamental do discurso do culto à magreza, assim como o “antes e depois” escolhido para destaque e, sobretudo, a própria identificação dessa série de stories de Marília como uma informação digna de ser noticiada. Diversos artistas utilizam suas redes sociais com frequência e a própria sertaneja era uma heavy user dessas mídias, publicando vários conteúdos diariamente. Essa manifestação em particular só se tornou notícia porque assim decidiu a revista Claudia.

Texto 3 - Marie Claire (23/12/2016)

 

Título: "Não sou obrigada a ser magra", dispara Marília Mendonça sobre corpo

Subtítulo: Autoconfiante em relação à própria aparência, a cantora deseja se tornar um exemplo de valorização das características únicas de cada indivíduo

Marília Mendonça se tornou uma das grandes sensações da música sertaneja desde que lançou suas primeiras canções sobre relacionamento, como o hit "Infiel", no ano passado. Mas na direção contrária de outras cantoras de sucesso no Brasil, a goiana não pensa em mudar a aparência para ajudar a alavancar ainda mais sua recém-lançada carreira musical. Pelo contrário, quer se tornar um exemplo de valorização do corpo como ele é naturalmente. "O que faz bem para minha imagem é um trabalho com qualidade. É possível ser feliz por si mesma", contou à Marie Claire.

Marília sorri em cima do palco durante um show.

Nesta entrevista, Marília diz como está lidando com a fama, relembra o início da vida como cantora e fala de suas experiências próprias com homens: "Já traí e fui traída".

Marie Claire - Você não é o tipo de pessoa que segue tendências e/ou imposições de beleza ou moda. O que te faz ser assim?

Marília Mendonça - Nada na minha vida é imposto! Não sou obrigada a ser magra, me render a modinhas para ser feliz. Eu canto, não subo na passarela. Inventam um padrão e as pessoas têm de seguir. Isso é um absurdo. Você tem de fazer e ser como quiser. Talento não tem relação com balança ou roupa, e se você o tem será aceita pelo seu trabalho. Isso vale para todas as áreas. Agora, se a pessoa quiser mudar por ela, ok!

 

MC - Já sofreu preconceito por não ser magra?

MM - Eu não estou nem aí! Gente, a pessoa tem de estar bem com ela própria, aí sim fica bem com os outros e não para os outros. Se cada um tem DNA diferente, porque que teria de ser sempre magra? Sou feliz e quero, sim, que as pessoas me vejam como exemplo. Se um dia resolver emagrecer, será por vontade própria e não porque faz bem para minha imagem.

MC - Que tipo de roupa você gosta de vestir?

MM - Roupa confortável, porque é um saco usar algo e ficar puxando aqui e alí.

MC - É verdade que você usa pouca maquiagem para não mudar muito sua aparência?

MM - Claro, quando olho no espelho preciso ver a mim e não enxergar outra pessoa.

MC - Como foi o início de sua carreira na música?

MM - Com 13 anos eu já compunha e aos 15 tive minha primeira composição gravada, que foi "Crime perfeito", um sucesso nacional com João Neto & Frederico. Antes, não curtia sertanejo, gostava de rock, apreciava a música nordestina e, também, o brega. Um tempo depois, assinei contrato como compositora, mas queria cantar. Meu empresário, Wander Oliveira, segurou a onda e me convenceu a esperar o melhor momento e maturidade. Em agosto de 2015 fui para estrada pela primeira vez como cantora. Mas antes disso gravei meu primeiro DVD com, no máximo, 15 convidados e num espaço de 70 metros quadrados.

MC - E como alcançou o sucesso?

MM - Algumas coisas têm lógica, mas não têm uma explicação concreta. O sucesso não é uma ciência exata, você trabalha, dá o seu melhor, faz tudo certinho e tudo isso vai para as mãos do povo, que vira juiz. Quando o sucesso acontece é porque se identificaram com sua música, mas para ser duradouro tem de ser verdadeiro. Talvez as mulheres precisassem de uma voz para dizer que nem tudo são flores, mas que podemos, sim, lidar com espinhos.

MC - Depois que ficou famosa, o assédio dos homens aumentou?

MM - Para falar a verdade, nunca tive problemas com homem. Nunca passei vontade e sempre escolhi, nunca me deixei ser escolhida. Passei perrengue como qualquer pessoa, fui traída e traí também, coisas da vida. É natural que o assédio aumente quando se ganha visibilidade, mas já tenho meu eleito!

 

MC - Você é uma das artistas mais vistas no YouTube no Brasil, qual o diferencial para atrair tanta atenção?

MM - Minha música! Meu repertório é bem o cotidiano, não serve somente para mulheres, mas para homens também. A música "Meu Cupido é Gari" fala de alguém que tem dedo podre para escolher parceiro e o tal do cupido só lhe traz lixo. Infidelidade [tema do sucesso "Infiel"] é algo que nunca vai acabar. Isso tudo chama atenção porque te traz para o mundo real, e não só para o conto de fadas perfeito com final feliz.

 

MC - E como você está lidando com todo este sucesso?

MM - Com alegria, porque sempre busquei ser reconhecida pelo meu trabalho e o sucesso é consequência disso. Eu me incomodo com pessoas que pensam ter o direito de comandar meus passos e tirar minha naturalidade. Eu não sou uma personagem, sou eu mesma, não existem pessoas distintas: Marilia Mendonça e Marília Mendonça cantora. Há apenas momentos diferentes. No meu trabalho, sou profissional. Em casa, com a família, amigos e namorado sou a responsável menina de 21 anos.

O conteúdo da Marie Claire, de 2016, mais antigo entre os três, é o que possui menos textos redigidos pela revista e, ainda assim, se destaca em termos de machismo e gordofobia explícitos e repetitivos. Condiz com a quantidade de matérias encontradas em sua ferramenta de busca associando Marília ao seu corpo: além dessa, cinco outras entre 2018 e 2019, anos em que Marília era constantemente vigiada em suas oscilações de peso. Pelo contrário, não condiz com o editorial que propaga para a “mulher moderna”; há até mesmo uma aba específica em seu site para discutir o feminismo.

Nesse texto, o assunto é abordado a partir do gênero jornalístico da entrevista, fornecendo ao entrevistador a possibilidade de explorar os assuntos de sua preferência, em perguntas que devem ser elaboradas conforme o cenário de relevância do entrevistado naquele momento. O lide que antecede a entrevista resume a ascensão meteórica da cantora: "Marília Mendonça se tornou uma das grandes sensações da música sertaneja desde que lançou suas primeiras canções sobre relacionamento, como o hit ‘Infiel’, no ano passado". Ou seja, seu trabalho no mercado da música sertaneja seria o motivo pelo qual as leitoras se interessariam por uma entrevista com a cantora. Entretanto, não foi esse o tema exposto na manchete, menos ainda no texto que se seguiu.  

A começar pela manchete, nos deparamos com a reprodução de uma fala da cantora: “Não sou obrigada a ser magra”. Em seguida, o enunciado postula que Marília “disparou” essa fala sobre seu corpo. De acordo com o dicionário Oxford, “disparar” significa, por metáfora, “dizer algo inesperado, espirituoso ou ferino”. Não se sentir na obrigação de ser magra seria, então, um fato diferente do que se esperava, em suma. O esperado era que se mostrasse preocupada com o peso, em vias de emagrecer. Além disso, outra inferência que esse verbo produz é a de que foi um fala espontânea; o que não é verdade.

Analisando o conteúdo das perguntas, temos quatro sobre as aparências, quatro em torno do seu trabalho e uma sobre "o assédio dos homens". Suas características físicas somadas ao olhar masculino, para a revista, tiveram o mesmo peso do que ter a música mais tocada do país. Antes disso, no subtítulo, temos uma pista disso: Marília é descrita como “autoconfiante em relação à própria aparência” e estaria desejando “se tornar um exemplo de valorização das características únicas de cada indivíduo”. Logo em seguida, no lide, o jornalista afirma que ela "vai na direção contrária de outras cantoras de sucesso no Brasil", por não pensar em "mudar a aparência para ajudar a alavancar" sua carreira. Infere-se que as “outras cantoras” só passam por transformações físicas para fazer sucesso e, mais ainda, que possuem um menor valor por fazê-lo. Esse discurso de pressupostos é uma peça-chave na promoção da rivalidade feminina e atua diretamente no interdiscurso do mito da beleza. É a velha oposição entre a mulher bela e a mulher inteligente, conforme foi destacado por Wolf.

Partindo para as perguntas relacionadas à beleza, percebemos que a primeira delas é também a que abre a entrevista, ditando o tom central já anunciado pelos textos antecedentes. O foco é no comportamento da beleza, já que a questão traz um juízo de valor sobre Marília, de que ela “não é o tipo de pessoa que segue tendências e/ou imposições de beleza ou moda", o que se baseia inteiramente nas percepções do entrevistador; não faz parte da pergunta, é uma afirmação. Então, ele indaga: "o que te faz ser assim?". E é nessa resposta despreocupada da artista que o repórter recebe as aspas perfeitas para sua manchete. Em uma indução calculada, visto que ele próprio definiu a conduta da cantora dentro da pergunta. Não foi “inesperado”, “espirituoso” ou “feril”.

Na sequência, ele questiona se Marília "já sofreu preconceito por não ser magra", persistindo no mesmo assunto para tentar extrair uma resposta sobre gordofobia, ao que Marília responde categoricamente, mais uma vez, que "não está nem aí". O fato dessa pergunta vir logo após a primeira traz uma inferência implícita de que, quando a revista falava em “imposições de beleza”, tratava-se, na verdade, da magreza. E quando a próxima pergunta é sobre o tipo de roupa que ela gosta de vestir, logo depois de estereotipá-la como uma mulher gorda que não participa dos rituais de beleza e moda, o que se espera é um reforço desse arquétipo, e isso se sucede pela próxima, que a coloca como alguém que prefere não pesar na maquiagem. 

Antes de ser exaltada por seu talento, a mulher de sucesso precisa ser lembrada de que não pertence à categoria das belas, das magras, das que se esforçam para ali pertencer. Assim, o que a revista parece tentar aplicar como ideia é a desconstrução do mito da beleza; o que executa, pelo contrário, é a trajetória completa de seu discurso. Um potente reforço do mito. É o mesmo feito do colunista Gustavo Alonso, responsável pelo obituário da cantora na Folha de S. Paulo, intitulado Marília Mendonça, rainha da sofrência, não soube o que é o fracasso, que apesar das repercussões negativas generalizadas, continuou no ar.

A manchete pontua que Marília “não soube o que é fracasso” enquanto “rainha da sofrência”, ou seja, o foco se propõe a estar em seus trabalhos. E de fato, o que se discorre no texto, principalmente, é sua trajetória profissional. Entre os 20 parágrafos apresentados, 13 tratam de sua carreira, relembrando suas músicas e suas realizações. Nisso, o conteúdo se diferencia da entrevista publicada na Marie Claire em 2016, cinco anos antes. Contudo, três trechos distribuídos ao longo do texto costuram o mito da beleza e da magreza à narrativa, sendo que os dois primeiros foram duramente criticados por personalidades e internautas anônimos na internet. 

Primeiro, sua morte e sua vida como compositora e cantora são ressaltadas. Até os parágrafos 10 e 11, estes que foram um tanto rejeitados nas mídias sociais, em que finalmente o colunista retoma a temática das dietas e aponta para os atributos físicos de Marília:

 

Nunca foi uma excelente cantora. Seu visual também não era dos mais atraentes para o mercado da música sertaneja, então habituado com pouquíssimas mulheres de sucesso – Paula Fernandes, Cecília (da dupla com Rodolfo), Roberta Miranda, Irmãs Galvão, Inhana (da dupla com Cascatinha).

 

Marília Mendonça era gordinha e brigava com a balança. Mais recentemente, durante a quarentena, vinha fazendo um regime radical que tinha surpreendido a muitos. Ela se tornava também bela para o mercado. Mas definitivamente não foi isso que o Brasil viu nela.

 

Para começar, ele afirma que Marília “nunca foi uma excelente cantora”. Uma vez que era essa sua ocupação principal, ao lado das composições, negar sua excelência logo após exaltá-la como profissional é uma contraditória maneira de deslegitimar suas habilidades. Então, parte para o visual de Marília, que "não era dos mais atraentes para o mercado da música sertaneja". Em uma coluna posterior, na qual se colocou como vítima do “tribunal digital”, Gustavo assinala que essa afirmação foi baseada em fatos, não em sua própria opinião. 

O “fato” ao qual se refere seria a opinião pública e, portanto, o olhar hegemônico acerca da beleza. Entretanto, como toda informação exposta nesse obituário, essa foi selecionada e escolhida para retratar o percurso de Marília, como um ponto de relevância. E mais do que isso, não houve sequer um contraponto a essa visão “do mercado”. O que se opunha à sua “falta de beleza” e permitiu que fizesse sucesso, conforme a progressão narrativa, seria seu talento para escrever músicas. Novamente, a eterna oposição entre a figura da bela e da bem-sucedida no trabalho, que não podem existir concomitantemente, no mesmo corpo. Mas o que seria esse visual “pouco atraente”?

A resposta vem no parágrafo seguinte. O foco em sua aparência estaria em seu peso, no fato de não ser magra. Ele utiliza o termo “gordinha”, eufemismo que já analisei neste trabalho como um aspecto da gordofobia, amenizando seu significado e aplicando o corpo gordo a uma posição renegada. O colunista declara ainda que ela “brigava com a balança”. O verbo “brigar” traz um teor de agressividade e desentendimento, como se a cantora desaprovasse veementemente seu corpo e estivesse em um difícil embate para torná-lo magro, o que em momento algum foi comunicado por ela própria. A expressão “brigar com a balança” constantemente é associada a pessoas gordas, reforçando a ideia de que seus corpos devem ser combatidos, em um estado de normalidade social.

O autor relembra ainda o "regime radical" realizado por Marília durante a quarentena, "que tinha surpreendido a muitos", trazendo o subentendido de que o público não esperava que ela “vencesse” o tal embate com a balança. Afinal, "ela se tornava também bela para o mercado". Neste trecho, "bela" se fixa de vez como uma maneira implícita de dizer "magra", construindo amenidades assim como o termo “gordinha”. Ele fecha o parágrafo introduzindo seu contraponto de que não foi a beleza (magreza) que fez com que fosse reconhecida e amada pelo Brasil. O que é uma obviedade, já que a cantora é um fenômeno desde seu lançamento. Não haveria como ser esse o motivo de seu sucesso. Afinal de contas, seu corpo nunca foi o objeto do seu trabalho, fato que Marília sempre fez questão de reforçar. Em uma seleção fiel ao seu legado, essa informação nem seria digna de estar em um obituário.

Ele continua descrevendo as conquistas da cantora, até que, perto do final do texto, o assunto corpo e imagem é resgatado neste trecho:

 

Mendonça era também a cara do Brasil nas suas contradições. Afirmava a poética da autoaceitação, mas aparentemente teve que mudar sua imagem e emagrecer ao longo dos anos de showbusiness.

 

Para ele, era uma contradição que Marília proclamasse discursos de autoaceitação enquanto passava por processos de emagrecimento “ao longo dos anos de showbusiness”. Como se o ato de emagrecer significasse uma anulação, uma rejeição ao corpo gordo, e como se a autoaceitação estivesse intrinsecamente conectada com a imutabilidade. Indo mais além, suas subjetividades foram negadas e silenciadas dentro desse enunciado. A voz de Marília não foi levada em consideração para construir o discurso — sendo que mais de uma vez, ela justificou suas escolhas para o público, justamente por ter sido tão questionada. Se assim fosse, autoaceitação e transformação poderiam coexistir. Sua individualidade poderia existir. Em vez disso, a voz hegemônica do mito da beleza dominou os espaços, de ponta a ponta.

Por mais que a estrutura e o conteúdo de seu texto não tenham sido esmiuçados dessa maneira na época em que foi lançado, dois únicos trechos em circulação foram capazes de provocar emoções negativas coletivas. Para o autor, a seleção desses pedaços para divulgação em notas de repúdio indicaria uma ausência de contextualização. Uma análise rasa, típica de quem não leu toda a história. História essa que foi escrita por um estudioso, como apontou em um argumento de autoridade. Mas o fato é que mesmo dentro do contexto, mesmo que contenha um olhar crítico e realista para a maneira como o mercado encarou Marília, suas escolhas textuais e argumentativas são coniventes e até mesmo participativas em relação a essa visão da obrigatoriedade da magreza.

Mais uma vez, Marília sorrindo, segurando o microfone, fazendo o que fazia de melhor: encantar o público.

Em meio à perda de um ídolo tão forte no imaginário popular, poucas palavras são o suficiente para desrespeitar a memória afetiva e o luto do público. A reação ao seu texto, disseminada nas redes sociais, uniu pessoas de ideologias políticas divergentes. Muitos não usaram as palavras “machismo” e “gordofobia” para descrever o porquê discordavam. A revolta atingiu lugares que não discutem discriminações identitárias, sequer reconhecem sua existência. Isso prova justamente o quanto sua figura era maior do que aquelas frases, maior do que as pressões estéticas impostas a ela em sua trajetória, maior do que o mercado. Tão maior que nenhum desses fatores deveria ter o poder de representá-la no dia de sua morte.   

 

Gerou repercussões em outros veículos e até na própria Folha de S. Paulo, na coluna da jornalista Mariliz Pereira Jorge. A autora resume a interpretação que os trechos divulgados permitem: "Marília fez muito sucesso apesar de ser gordinha". “O autor pode ter acreditado que apenas resumia uma impressão coletiva. Fiquei incomodada porque é uma visão preguiçosa sobre o que tem acontecido na sociedade, na qual Marília Mendonça se mostrou uma das maiores representantes de sua geração”, afirma Mariliz em sua coluna. Seu penúltimo parágrafo define bem a real importância de Marília para a construção identitária das mulheres brasileiras:

“Para mim, Marília Mendonça foi um acontecimento porque deu voz às angústias femininas sobre o amor, empoderou afetivamente as mulheres por meio de suas canções e libertou o seu público das amarras com as quais a ditadura da beleza ainda tenta nos aprisionar. É também um sinal dos tempos, uma mudança linda nas novas gerações, de entendimento e de aceitação de que o corpo de uma mulher não a define como pessoa ou profissional”

— Mariliz Pereira Jorge em Mulheres são julgadas pela aparência até quando morrem (2021)

Mas... e agora?

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